quarta-feira, 21 de junho de 2017

Meias verdades e mentiras por inteiro: o auxílio reclusão




POR SIMONE MEOTTI
Advogada – OAB/RS 53.440

A frequência com que tenho ouvido comentários equivocados e distorcidos acerca do auxílio-reclusão faz com que me motive a escrever a respeito.

O mais comum é ouvir as pessoas dizendo, indignadas, que se paga a cada filho de presidiário a importância aproximada de R$ 900,00 por mês. Argumentam que, dessa forma, há um incentivo à criminalidade e que acaba sendo mais vantajoso estar preso do que ter que trabalhar para prover o sustento dos filhos. Em regra, efetuam cálculos para verificar a suposta renda mensal de um presidiário cuja família seja numerosa, num inevitável comparativo ao salário pago à maioria dos trabalhadores brasileiros.
Além disso, recebi por duas oportunidades e-mail, com texto anônimo (como era de se esperar), trazendo, em meio a um discurso inflamado, muitas vezes agressivo, as mesmas informações equivocadas; inclusive se referindo ao auxílio-reclusão como “bolsa-bandido”.


Independente da origem e a quem interessam tais observações, o fato é que não correspondem com a verdade.
O auxílio-reclusão é um benefício previdenciário destinado a garantir a subsistência dos dependentes do segurado de baixa renda enquanto este encontrar-se preso sob regime fechado ou semi-aberto.
Na verdade, existe uma série de detalhes que são levados em consideração para a concessão do auxílio-reclusão, mas o mais importante parece esclarecer que este benefício é concedido somente aos dependentes do presidiário que possuir a qualidade de segurado da Previdência Social à época de sua prisão. Ou seja, é necessário que o preso mantenha vínculo com o INSS. E isso se dá por meio de contribuições, as quais – utilizando-se de linguagem extremamente simples – ocorrem através da carteira de trabalho assinada, no caso do empregado; de Guias da Previdência Social, em se tratando de contribuintes individuais (como profissionais autônomos, por exemplo) e segurados facultativos; e do bloco de produtor rural para quem é agricultor na condição de segurado especial.



Em resumo, pode-se dizer que o auxílio-reclusão é concedido aos dependentes do trabalhador que contribui ou contribuiu para a Previdência Social dentro de determinado período.
Com isso, fica claro que não basta ser preso para que o benefício seja concedido, é necessário, dentre outros requisitos, que o preso mantenha a qualidade de segurado do INSS.
Não se exige que o trabalhador esteja contribuindo no momento do recolhimento à prisão, mas, exige-se que não tenha transcorrido mais do que determinado período a partir da data da última contribuição. Período que pode variar de acordo com as peculiaridades de cada caso.
Também é necessário que o último salário de contribuição do segurado (vigente na data do recolhimento à prisão ou na data do afastamento do trabalho ou cessação das contribuições) não ultrapasse o valor estipulado por Portaria Ministerial. A partir de 1º de janeiro de 2012 esse valor é de R$ 915,05, conforme Portaria nº 02, de 06/01/2012. Mas, não significa que todo o auxílio-reclusão é pago neste valor. Este se refere ao teto, ao máximo que pode ser pago.
Para cada caso se realiza um cálculo considerando as contribuições efetuadas pelo segurado para, então, definir-se o valor do auxílio-reclusão aos seus dependentes. Porém, em nenhuma hipótese o auxílio-reclusão pode ultrapassar o valor estipulado pela referida portaria, já que é pago justamente para os dependentes do segurado preso de baixa renda. Salientando-se que para os agricultores enquadrados como segurados especiais, o auxílio-reclusão é pago no valor de um salário mínimo mensal.

Ademais, o valor fixado para o auxílio-reclusão (que, como vimos, varia caso a caso), é dividido em partes iguais entre todas as pessoas que se enquadram como dependentes do segurado preso. Ou seja, há um rateio do benefício entre os dependentes e, não, o pagamento de um benefício em valor integral para cada um deles, como erroneamente se tem divulgado, causando revolta e indignação às pessoas de bem que não conhecem o ordenamento legal.
A continuidade do pagamento deste benefício está condicionada à manutenção das condições existentes no momento de sua concessão. Os beneficiários deverão apresentar ao INSS, de três em três meses, documento expedido por autoridade competente atestando que o trabalhador continua preso, enfim, informando sua situação atualizada.
Dentre as situações que acarretam a cessação do benefício está a fuga do presidiário.


Diante do exposto, pode-se perceber que o auxílio-reclusão não é tão simples de ser concedido, pois requer o preenchimento de determinados requisitos, e um deles é a manutenção da qualidade de segurado do INSS por parte do preso, situação que não é comum acontecer, eis que a grande maioria dos presos não possui qualquer vínculo com a Previdência Social, não tendo, seus dependentes, por consequência, direito ao benefício.
Sendo o INSS uma “seguradora social”, infere-se que seu objetivo é proteger, socorrer seus segurados em momentos de sinistro, como morte e doença, por exemplo. O mesmo ocorrendo em casos de prisão. Por isso, repisa-se, para fazer jus ao auxílio-reclusão, não basta simplesmente ser preso, é necessário, assim como ocorre com todos os demais benefícios previdenciários - tais como pensão por morte e auxílio-doença -, preencher todos os requisitos exigidos por lei.
Por remate, é pertinente lembrar que o auxílio-reclusão não é benefício recente, possuindo previsão legal há muitos anos, uma vez que foi incluído na Lei Orgânica da Previdência Social – LOPS (Lei nº 3.807), no longínquo ano de 1960. Atualmente, é previsto pela Constituição Federal de 1988 e disciplinado pela Lei nº 8.213, de 24 de julho de 1991.

Assim, se é justo ou injusto o auxílio-reclusão, fica a critério de cada cidadão fazer suas próprias considerações. Indiferente de opiniões pessoais, o fato é que seu pagamento dá-se da forma exposta e não como vem sendo amplamente difundida.

Por que a indignação contra a corrupção no Brasil é seletiva?

 


por Salah H. Khaled Jr.*

 Classes   médias desiludidas com o candidato que representava de modo mais significativo uma cruzada moralista contra o PT dormem sossegadas em pleno tiroteio, por motivos muito simples: a missão já foi cumprida. Nunca foi sobre a corrupção. Foi sobre faxineiras e hotéis, porteiros e passagens de avião, empoderamento feminino, homofobia, negros e pobres em Universidades Federais. Foi sobre a dificuldade de conseguir empregadas domésticas a preços baixos. Destruir o PT significava lidar com tudo isso. Meio para um fim, por mais equivocada que a percepção possa ser.

A indignação seletiva contra a corrupção é um fenômeno a ser estudado. O vapor levantado contra Dilma produziu níveis elevados de ultraje moral, enquanto os indícios contra Aécio e Temer não parecem produzir mais do que leves aborrecimentos, como se fossem práticas rotineiras e aceitáveis da vida política.
Na esteira de Jock Young, eu diria que o ressentimento das classes médias é um componente explicativo importante para a compreensão do fenômeno. Independentemente de eventuais críticas aos governos do PT (muitas delas acertadas) é inegável que neles houve atenção inédita aos estratos sociais mais vulneráveis, com ampliação massiva do programa bolsa família, ações afirmativas e muitas outras iniciativas de celebração da diversidade.
Penso que é possível especular que o cidadão de classe média pagador de impostos tenha alimentado um ressentimento cada vez maior pelos estratos inferiores, que enxerga como inimigos: vistos como ameaças ao seu bem estar e segurança (vida, propriedade e liberdade), que usufruem “gratuitamente” dos seus esforços, através do Estado, sem que exista uma contrapartida como a sua. Dou um exemplo: é provável que uma mulher de classe média preocupada com a carreira tenha dificuldade para engravidar em idade mais avançada e de certo modo tenha “inveja” de adolescentes que engravidam com enorme facilidade e recebem benefícios de programas sociais.
Logicamente, homens e mulheres de classe média não trocariam de lugar com pessoas de estratos inferiores. Mas por outro lado, o estilo hedonista e despreocupado de vida que levam (pelo menos aparentemente) pode fazer com que o ressentimento brote com muita força. Ele facilmente pode se tornar ódio se devidamente explorado pelos canais midiáticos, o que pode explicar muito do que estamos vivendo. O terreno é extremamente fértil para a disseminação de pânicos morais. O auxílio reclusão provoca sentimentos semelhantes, gerando fortes reações punitivistas, que foram atendidas nos governos petistas, que subscreveram ao que já se chamou de “esquerda punitiva”. Tais medidas poderiam ter rendido alguma popularidade, mas em compensação, a atenção dada a pautas LGBT, movimentos feministas e a causa negra afetaram a certeza identitária, o que causa insegurança ontológica, provocando elevados níveis de ressentimento e identificação do PT com o que já foi chamado de “tudo de ruim”.
Curiosamente, a classe média não vê a classe alta como adversária: se identifica com ela. É a luz no fim do túnel que pretendem alcançar, ainda que seja ela a classe que conta com mais artifícios para driblar os tributos que para a classe média são uma realidade tão inescapável quanto a morte. É comum que eventuais vitoriosos desfrutem dessas vantagens, inclusive se gabando do triunfo meritocrático por eles protagonizado.
Tudo isso tem relação com o capitalismo e a sociedade de consumo, é claro. A ascensão promovida pelo PT foi exclusivamente voltada para o consumo. Não houve esforço equivalente na consciência cidadã, o que poderia ter sido feito através de investimento massivo na educação básica, por exemplo. Não é por acaso que pessoas em condições financeiras de maior fragilidade não saíram para defender Dilma nas ruas: quando o inverno chegou, o tesão foi embora. Eis o problema de uma sociedade fundada na aspiração de consumo e não no apreço pela democracia.
Classes médias desiludidas com o candidato que representava de modo mais significativo uma cruzada moralista contra o PT dormem sossegadas em pleno tiroteio, por motivos muito simples: a missão já foi cumprida. Nunca foi sobre a corrupção. Foi sobre faxineiras e hotéis, porteiros e passagens de avião, empoderamento feminino, homofobia, negros e pobres em Universidades Federais. Foi sobre a dificuldade de conseguir empregadas domésticas a preços baixos. Destruir o PT significava lidar com tudo isso. Meio para um fim, por mais equivocada que a percepção possa ser.

Uma classe média que se espelha em uma elite burra (que prefere espoliar seus eventuais funcionários a ampliar o mercado de consumo) é um problema significativo para a construção de um país solidário, comprometido com a erradicação da pobreza e redução da desigualdade.
Muito poderia ter sido feito de forma diferente, inclusive pelo próprio PT, que não rompeu com o capitalismo financeiro e especulativo. Mas isso é conversa para outro dia. E não, eu não comemoro qualquer prisão… E sinceramente, preferiria um Temer fraco a um candidato eleito indiretamente e comprometido com as mesmas reformas de sangramento de direitos sociais e fundamentais.

*Salah H. Khaled Jré Doutor e mestre em Ciências Criminais (PUCRS), mestre em História (UFRGS). Professor da Universidade Federal do Rio Grande (FURG). Escritor de obras jurídicas. Autor de A Busca da Verdade no Processo Penal: Para Além da Ambição Inquisitorial, editora Atlas, 2013 e Ordem e Progresso: a Invenção do Brasil e a Gênese do Autoritarismo Nosso de Cada Dia, editora Lumen Juris, 2014 e coordenador de Sistema Penal e Poder Punitivo: Estudos em Homenagem ao Prof. Aury Lopes Jr., Empório do Direito, 2015.