por Salah H. Khaled Jr.*
A indignação seletiva contra a
corrupção é um fenômeno a ser estudado. O vapor levantado contra Dilma produziu
níveis elevados de ultraje moral, enquanto os indícios contra Aécio e Temer não
parecem produzir mais do que leves aborrecimentos, como se fossem práticas
rotineiras e aceitáveis da vida política.
Na esteira de Jock Young, eu diria que
o ressentimento das classes médias é um componente explicativo importante para
a compreensão do fenômeno. Independentemente de eventuais críticas aos governos
do PT (muitas delas acertadas) é inegável que neles houve atenção inédita aos
estratos sociais mais vulneráveis, com ampliação massiva do programa bolsa
família, ações afirmativas e muitas outras iniciativas de celebração da
diversidade.
Penso que é possível
especular que o cidadão
de classe média
pagador de impostos tenha alimentado um ressentimento cada vez maior pelos
estratos inferiores, que enxerga como inimigos: vistos como ameaças ao seu bem estar e segurança (vida, propriedade e liberdade), que
usufruem “gratuitamente” dos seus esforços, através do Estado, sem que exista
uma contrapartida como a sua. Dou um exemplo: é provável que uma mulher de
classe média preocupada com a carreira tenha dificuldade para engravidar em
idade mais avançada e de certo modo tenha “inveja” de adolescentes que
engravidam com enorme facilidade e recebem benefícios de programas sociais.
Logicamente, homens e mulheres de
classe média não trocariam de lugar com pessoas de estratos inferiores. Mas por
outro lado, o estilo hedonista e despreocupado de vida que levam (pelo menos
aparentemente) pode fazer com que o ressentimento brote com muita força. Ele
facilmente pode se tornar ódio se devidamente explorado pelos canais
midiáticos, o que pode explicar muito do que estamos vivendo. O terreno é
extremamente fértil para a disseminação de pânicos morais. O auxílio reclusão
provoca sentimentos semelhantes, gerando fortes reações punitivistas, que foram
atendidas nos governos petistas, que subscreveram ao que já se chamou de
“esquerda punitiva”. Tais medidas poderiam ter rendido alguma popularidade, mas
em compensação, a atenção dada a pautas LGBT, movimentos feministas e a causa
negra afetaram a certeza identitária, o que causa insegurança ontológica,
provocando elevados níveis de ressentimento e identificação do PT com o que já
foi chamado de “tudo de ruim”.
Curiosamente, a classe média não vê a
classe alta como adversária: se identifica com ela. É a luz no fim do túnel que
pretendem alcançar, ainda que seja ela a classe que conta com mais artifícios
para driblar os tributos que para a classe média são uma realidade tão
inescapável quanto a morte. É comum que eventuais vitoriosos desfrutem dessas
vantagens, inclusive se gabando do triunfo meritocrático por eles
protagonizado.
Tudo isso tem relação com o
capitalismo e a sociedade de consumo, é claro. A ascensão promovida pelo PT foi
exclusivamente voltada para o consumo. Não houve esforço equivalente na
consciência cidadã, o que poderia ter sido feito através de investimento
massivo na educação básica, por exemplo. Não é por acaso que pessoas em
condições financeiras de maior fragilidade não saíram para defender Dilma nas
ruas: quando o inverno chegou, o tesão foi embora. Eis o problema de uma sociedade
fundada na aspiração de consumo e não no apreço pela democracia.
Classes médias desiludidas com o
candidato que representava de modo mais significativo uma cruzada moralista
contra o PT dormem sossegadas em pleno tiroteio, por motivos muito simples: a
missão já foi cumprida. Nunca foi sobre a corrupção. Foi sobre faxineiras e
hotéis, porteiros e passagens de avião, empoderamento feminino, homofobia,
negros e pobres em Universidades Federais. Foi sobre a dificuldade de conseguir
empregadas domésticas a preços baixos. Destruir o PT significava lidar com tudo
isso. Meio para um fim, por mais equivocada que a percepção possa ser.
Uma classe média que se espelha em uma
elite burra (que prefere espoliar seus eventuais funcionários a ampliar o
mercado de consumo) é um problema significativo para a construção de um país
solidário, comprometido com a erradicação da pobreza e redução da desigualdade.
Muito poderia ter sido feito de forma
diferente, inclusive pelo próprio PT, que não rompeu com o capitalismo
financeiro e especulativo. Mas isso é conversa para outro dia. E não, eu não
comemoro qualquer prisão… E sinceramente, preferiria um Temer fraco a um
candidato eleito indiretamente e comprometido com as mesmas reformas de
sangramento de direitos sociais e fundamentais.
*Salah H. Khaled Jr. é
Doutor e mestre em Ciências Criminais (PUCRS), mestre em História (UFRGS).
Professor da Universidade Federal do Rio Grande (FURG). Escritor de obras
jurídicas. Autor de A Busca da Verdade no Processo Penal: Para Além da Ambição
Inquisitorial, editora Atlas, 2013 e Ordem e Progresso: a Invenção do Brasil e
a Gênese do Autoritarismo Nosso de Cada Dia, editora Lumen Juris, 2014 e
coordenador de Sistema Penal e Poder Punitivo: Estudos em Homenagem ao Prof.
Aury Lopes Jr., Empório do Direito, 2015.
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