Maria da Penha: Quatro anos depois da lei,conscientização e capacitação são necessidades urgentes
Julia Reis (iG SP, 25/11/2010)
Em 1983 Maria da Penha Maia Fernandes estava dormindo quando levou um tiro pelas costas. O autor do disparo era o marido, pai de suas três filhas. Maria ficou paraplégica, mas voltou para casa depois de uma temporada no hospital. Ela já sofria com agressões antes do episódio, mas, aos 38 anos, temia em pedir a separação. “Tinha medo que chegasse a esse ponto de violência, mas ao mesmo tempo achava que não seria possível”, diz. Ela só saiu de casa depois da segunda tentativa de assassinato por Marco Antônio Viveiros, que desta vez tentou eletrocutá-la durante o banho.
Maria da Penha ficou paraplégica após o marido atirar pelas costas
Foto: Amana Salles - Fotoarena
O caso de Maria choca e se tornou um ícone na luta pelos direitos da mulher, mas não é exceção. Segundo dados das Nações Unidas, uma em cada três mulheres no mundo é vítima de violência. Na América Latina, a proporção sobe para 40%, de acordo com a Comissão Econômica para América Latina e Caribe (Cepal). Segundo a Organização das Nações Unidas para Educação, Ciência e Cultura (Unesco), o problema atinge proporções epidêmicas.
A punição do agressor de Maria da Penha só veio depois de 19 anos de julgamento – e ele ficou apenas dois anos em regime fechado. O caso chegou a ser denunciado internacionalmente como exemplo de omissão e negligência e ajudou a pressionar uma mudança na constituição brasileira.
Maria da Penha hoje dá nome para a lei 11.340, que entrou em vigor em 2006, e cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, como possibilitar a prisão preventiva ou em flagrante dos agressores.
Novos desafiosEmbora as pesquisas indiquem um aumento do conhecimento da Lei Maria da Penha pela população em geral - um número que gira em torno de 80% segundo dados do Ibope e Instituto Avon -, isso não basta para garantir a diminuição das ocorrências. Quatro anos depois que a lei entrou em vigor, a conscientização é fundamental, um processo longo que não envolve só as mulheres. Homens, jovens e aqueles que aplicam a lei – da delegacia ao tribunal – são públicos alvo.
“Precisamos pensar tanto na conscientização das mulheres como na capacitação dos operadores de direito, que aplicam a lei. Elas precisam dizer não à violência e denunciar, mas com a confiança de que serão atendidas e que a lei será cumprida” diz Rebecca Tavares, representante do UNIFEM no Brasil e Cone Sul. Segundo ela, muitas mulheres que procuram ajuda acabam sendo agredidas novamente, julgadas ou enviadas de volta para casa. “É possível que delegados questionem a roupa que usam, se deveriam ou não ter saído sozinhas”, aponta.
Somente 7% dos municípios brasileiros têm delegacias especializadas no atendimento a mulher. “Qualquer delegado é obrigado a atender a mulher, mas ainda assim eles a mandam para a delegacia da mulher. E ela chega lá, pega senha e volta para casa”, critica Maria da Penha, que vê uma insuficiência no sistema de atendimento em função da demanda de queixas.
Hoje, dia 25 de novembro, é o dia Internacional para a Eliminação da Violência contra a Mulher. Entre as iniciativas que integram o movimento este ano, está o recém lançado portal Quebre o Ciclo (www.quebreociclo.com.br), iniciativa do Fundo de Desenvolvimento das Nações Unidas para a Mulher (UNIFEM) em parceria com o Instituto Avon. A plataforma tem como objetivo aumentar a conscientização de mulheres e operadores de justiça.
Foto: Amana Salles - Fotoarena
Portal “Quebre o Ciclo” é lançado em S P e recebe Maria da Penha
Eliza Samudio: erro e machismo
Um exemplo recente no erro na aplicação da lei é o caso de Eliza Samudio e o goleiro Bruno Fernandes – o jogador é suspeito pela polícia pelo sumiço da ex-namorada. Antes de desaparecer, ela havia denunciado agressões do jogador, mas não recebeu a proteção devida.
“A juíza adotou uma medida machista. Foi um erro baseado na convicção que existem classes diferentes de mulheres. Não importa se ela era casada, juntada ou ex-amante”, critica Penha. Para Rebecca, ela foi mais uma das mulheres que a justiça simplesmente não atendeu mesmo depois de várias denúncias.
“É um caso comum. O brasileiro sabe dessa história porque ele (Bruno) é famoso, mas muitas mulheres são assassinadas mesmo após procurar o apoio do governo”, diz. Dados consolidados pela UNIFEM apontam que metade das mulheres que morrem em homicídios são mortas pelos parceiros, maridos ou namorado.
“Muitos são lords”“A juíza adotou uma medida machista. Foi um erro baseado na convicção que existem classes diferentes de mulheres. Não importa se ela era casada, juntada ou ex-amante”, critica Penha. Para Rebecca, ela foi mais uma das mulheres que a justiça simplesmente não atendeu mesmo depois de várias denúncias.
“É um caso comum. O brasileiro sabe dessa história porque ele (Bruno) é famoso, mas muitas mulheres são assassinadas mesmo após procurar o apoio do governo”, diz. Dados consolidados pela UNIFEM apontam que metade das mulheres que morrem em homicídios são mortas pelos parceiros, maridos ou namorado.
A questão cultural e o caráter possessivo ou violento dos homens, assim como o alcoolismo, ainda são vistas como as principais causas da violência de gênero no Brasil, segundo um levantamento de percepção sobre violência doméstica realizado em 2009 pelo Instituto Avon. Maria da Penha é farmacêutica bioquímica. Seu ex-marido, economista e professor. Até por isso, ela refuta a associação da violência à condição social das famílias e crê que, quanto mais elitizado o caso de violência contra a mulher, mais camuflado ele é. “Não há perfil do homem agressor. Muitos são lords, gentlemans”, diz.
Violência sem marcasMuitas mulheres que sofrem violência não sabem. Isso porque a imagem dos hematomas pelo corpo pode ser a primeira associação quando se pensa em agressão ou violência. Mas o problema vai além das marcas físicas. Relações sexuais forçadas, violência psicológica, moral e patrimonial se encaixam na lei e no alarmante cenário mundial. A mulher que escuta xingamentos, tem seus bens subtraídos pelo marido, se sente intimidada e com a autoestima abalada ou é privada de trabalhar também pode, e deve, fazer a denúncia. “Elas demoram a perceber que é violência, não sabem seus direitos e que podem denunciar. É um trabalho de educação pública”, aponta Rebecca.
Nos primeiros cinco meses de 2010 foram registrados mais de 51 mil relatos de violência no país pela Central de Atendimento a Mulher, no telefone 180. Entre eles, 29.515 eram de violência física enquanto 13.464 casos relatados eram de teor psicológico e 6.438 de violência moral.
Sem desculpa
“Ele estava estressado, foi uma vez só” é uma das justificativas para agressões que as mulheres encontram e usam para minimizar a violência e uma das posturas que é combatida pelas campanhas nacionais e internacionais.
“Ele estava estressado, foi uma vez só” é uma das justificativas para agressões que as mulheres encontram e usam para minimizar a violência e uma das posturas que é combatida pelas campanhas nacionais e internacionais.
Mas há outros motivos pelos quais mulheres não denunciam seus companheiros. Segundo Rebecca, além do constrangimento e receio de humilhação, mulheres com filhos se sentem – ou são – mais dependentes do marido. “Ele diz que nunca mais vai acontecer. Isso é comum”, avalia. A violência começa aos poucos, pode ser inicialmente psicológica ou moral. “E quando você perdoa, participa do ciclo de violência. Eu entrei no ciclo três vezes”, diz Maria da Penha.
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