sábado, 21 de janeiro de 2012

POR QUE ME UFANO DE TER SIDO JOVEM EM 68...


GERAÇÃO 1968 E AVALANCHE CULTURAL
                       Leoncio de Queiroz*
 (... )Os anos que pegaram os governos do Juscelino e do Jango, com o curto entreato do Jânio Quadros, foram, seguramente, os de mais fecunda criação artística e cultural no Brasil – uma avalanche de talentos que se estendeu e repercutiu até os primeiros tempos da ditadura. (...) Nessa época surgiu a Bossa Nova e o Cinema Novo.
A música popular constituiu um terreno particularmente fértil, com o surgimento de um grande número de compositores extremamente talentosos, para não dizer geniais, como Chico Buarque, Tom Jobim, João Gilberto, Carlos Lira, Geraldo Vandré, Sérgio Ricardo, Edu Lobo, Gilberto Gil e Caetano Veloso. Na pintura, sobressaíram Portinari e Di Cavalcanti.
Na arquitetura e no urbanismo, fomentados com a construção de Brasília, Oscar Niemeyer e Lúcio Costa.
 Na literatura, Jorge Amado, Guimarães Rosa, João Cabral
de Melo Neto, Érico Veríssimo, Vinícius de Moraes e Clarice Lispector.

Na dramaturgia, além da genialidade de um Nelson Rodrigues, o teatro engajado de Oduvaldo Viana Filho, no Rio, e de Gianfrancesco Guarnieri, em São Paulo.
No cinema destacaram-se Nelson Pereira dos Santos, Glauber Rocha, Cacá Diegues, Rui Guerra e outros – havia muitos diretores no Cinema Novo.

A Geografia Humana teve seu expoente em Josué de Castro (A Geografia da Fome), a História, em Nelson Werneck Sodré e a antropologia, em Darcy Ribeiro.
 

 Resta mencionar os grandes educadores Paulo Freire e Anísio Teixeira e o economista que equacionou o problema do subdesenvolvimento brasileiro e criou a SUDENE – Celso Furtado.

Esses homens eram pensadores brasileiros originais e não meros papagaios do que se propalava na matriz norte-americana, como a maioria dos economistas e sociólogos que fizeram carreira sob o tacão da ditadura militar.
(...) Esses artistas e estudiosos eram, em sua grande maioria, comunistas, socialistas ou homens de esquerda. Ser de esquerda, aqui, significa preocupar-se com as condições de vida do povão e com a subordinação econômica do país. Toda essa efervescência cultural foi, burramente, censurada, combatida, perseguida, dispersada e aniquilada pela ditadura instaurada em 1964.
A geração cuja adolescência e juventude coincidiram com esse período, vivenciou um estímulo intelectual, uma colocação de novas ideias e uma sociedade em transformação rápida e positiva como nenhuma outra. Coube a ela questionar tabus arraigados, preconceitos cristalizados e realizar uma revolução nos costumes e na mentalidade então predominantes. Esta foi a geração do feminismo, do amor livre e do antirracismo.

 Nos Estados Unidos, foi a geração da contestação pacifista à guerra do Vietnã, do movimento hippie e do poder negro. Foram os moços e moças dos anos 60 que lutaram pela igualdade de direitos entre homens e mulheres, conquistaram a liberdade sexual e começaram a deitar por terra os preconceitos raciais.
Pode parecer estranho aos jovens de hoje, mas, em passado recente, as moças eram uma espécie de propriedade de seus pais, que tudo faziam para preservar-lhes a virgindade, como se nela se consubstanciasse toda a honra da família. Uma vez perdida essa condição e sendo impossível solucionar tudo com um casamento, a perda era amiúde incorporada à pessoa, que tornava-se uma “perdida” e era, com frequência expulsa de casa pelo pai, precisando muitas vezes recorrer à prostituição para sobreviver.
(...) As que conseguiam resistir e preservar o hímen tornavam-se, depois de casadas, dependentes dos maridos, que, não raramente, as proibiam de trabalhar. As mulheres não podiam viajar, nem ter conta bancária sem o consentimento daqueles. Se abandonassem o lar, perdiam o direito à guarda dos filhos.
O adultério feminino era punido, não com o apedrejamento, mas quase: com a execração pública, o desquite e a perda da convivência com os filhos, quando não com a morte, pois o assassínio da mulher adúltera era aceito como “legítima defesa da honra”.
Havia, nesse tempo, os que tentavam puxar para trás. Rapazes de terno, portando o estandarte do leão rompante, colhiam nas ruas assinaturas “contra o comunismo e o amor livre”. Embora em pequeno número, dispunham de consideráveis recursos. Esse grupo anacrônico utodenominava-se TFP – Tradição, Família e Propriedade – e ainda existe.
Certa vez, topei com alguns desses mancebos, de terninho e cabelo repartido fixado com Gumex, na Av. Rio Branco, perto do Castelo. Eles tinham, sobre uma bancada, um livro grande no qual tentavam colher assinaturas contra o amor livre.
Por coincidência, encontrei-me ali, também, com o Antônio Carlos Poerner, irmão mais novo do Arthur, que, como eu, estudava na Faculdade Nacional de Ciências Econômicas, só que ele fazia  Contabilidade, à noite. O Antônio Carlos era um moço magro e alto, ruivo, muito branco e de ar angelical. Era o estereótipo do estudante de violino, porém, possuía voz forte e presença marcante. Ele chegou-se aos coletores de assinaturas e perguntou de que se tratava. Estes iniciaram uma peroração contra o amor livre, até serem interrompidos pela voz possante do mais jovem dos Poerner:
- Vocês não têm, por acaso, um abaixo-assinado a favor do incesto? Eu sou a favor do incesto e quero assinar uma lista!
Ri muito do espanto e horror dos castos defensores da família e da virgindade.
 
(...) Essa geração 68, urdida no clima de liberdade intelectual do pós-guerra, submetida a uma criativa renovação cultural e com expectativas de progresso social  inspiradas nas realidades cubana e vietnamita sofreu todo o tipo de perseguição, sequestro, prisão, tortura, morte e desaparecimento. Contra ela, a direita militar, liderada por oficiais que tiveram seus neurônios lavados, escovados e engraxados em bases militares dos Estados Unidos, naquele país e no Panamá, deu dois golpes de Estado: um em 1964 e outro com o AI5.


Pertenceram a ela os jovens que, em 1968, se insurgiram na França e na Alemanha e os que, após manifestações, foram massacrados no México, assim como os que protestaram nos Estados Unidos contra a guerra do Vietnã.
A abertura política somente foi possível com a nossa luta e com o martírio de muitos. Embora tenhamos sido derrotados nas armas – nem poderia ter sido outro o desfecho, com todo o aparato internacional armado contra nós –, conquistamos uma vitória moral, que submetemos ao veredicto da História.

Outras gerações levantarão nossas bandeiras. Em nome de minha geração, agradeço penhoradamente:
Ao Marechal Henrique Teixeira Lott, por ter sido um homem honrado, justo e respeitador da legalidade e por, junto com outros militares legalistas, haver impedido o golpe que os militares de direta pretendiam levar a efeito de modo a impedir a posse do presidente eleito Juscelino Kubitschek.
A Leonel Brizola e ao General Machado Lopes, por terem frustrado o golpe militar de direita que pretendia impedir a posse do João Goulart.
A Ivan Proença, o capitão que, no golpe de 64, por iniciativa própria, garantiu a retirada dos estudantes que estavam concentrados na Faculdade Nacional de Direito, na Praça da República, e impediu um massacre que estava sendo preparado por grupos paramilitares de organizações anticomunistas. Eu estava entre esses estudantes.

Ao capitão Sérgio Ribeiro Miranda de Carvalho, conhecido como Sérgio Macaco, comandante do PARA-SAR, que se recusou a cumprir ordem superior para explodir o gasômetro do Rio de Janeiro. Ele evitou assim que se produzisse uma grande catástrofe que seria imputada aos militantes da luta contra a ditadura.

A Salvador Allende, Olof Palme, Boumedienne, Fidel Castro e aos povos do Chile, da Suécia, da Argélia e de Cuba por terem recebido tão bem, em seus países, os refugiados brasileiros.



*Leoncio de Queiroz
Carioca, nasceu em 1942. Trabalhava, em 1964, no CPC da UNE. No dia do golpe, estava no CACO, com outros estudantes que confiavam no Exército Brasileiro e em que o golpe seria esmagado. Participou do
ME e, em 1968, formou-se em Economia pela UFRJ. Pegou em armas contra a ditadura. Participou da ação de resgate dos prisioneiros políticos da penitenciária Lemos de Brito, em 1969. Mais tarde, exilou-se
no Uruguai, Chile e na Suécia. Economista e engenheiro físico.


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O texto acima  foi retirado do livro  "68 – a geração que queria mudar o mundo”,  lançado em maio de 2011, pelo Ministério da Justiça. São relatos de uma centena de ex-militantes políticos, organizados e sistematizados ao longo dos anos por Eliete Ferrer, do grupo “Os Amigos de 68”. Trata-se de contribuição ímpar para a difusão da memória daqueles que combateram o regime militar por descrever, sob diversos matizes, as percepções e concepções de vida que eles sustentaram, o modo como lutaram contra a ditadura, bem como as interrupções que tiveram em suas vidas e os recomeços que puderam construir. Nesse sentido, a publicação da obra é ato de reparação moral,pois contribui para a conexão da geração de 1968 com a história do país, permitindo que suas lutas e memórias constituam efetivamente parte da identidade nacional brasileira.
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Queridos leitores:
Estaremos divulgando e ilustrando outros textos  deste mesmo livro, aqui no Porta Aberta, para aqueles que como eu viveram esta sofrida época, mas nem por isso menos bela, recordarem com orgulho dos seus verdes anos; e para os jovens  tomarem conhecimento da história escrita por aqueles que a viveram e não pela pena fria de um historiador qualquer. Espero que tenham se emocionado como eu!
                                                Gladis Maia


Agradecimentos:
a todos os autores das imagens que ilustram este texto, os quais não foram nominados, em função de não ter encontrado os créditos nas páginas da web de onde as mesmas foram copiadas. Se algum por ventura ler este post pode reclamar e a correção será imediata. Por enquanto, muito obrigada!

Um comentário:

  1. Belo resgate daqueles anos incríveis. Vou voltar ao Blog para ler outros textos desse livro importantíssimo.
    Parabéns! este Blog está muito bonito e bem feito.

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