do Fórum Social Mundial 2002
Estavam
os habitantes nas suas casas ou a trabalhar nos cultivos, entregue cada um aos
seus afazeres e cuidados, quando de súbito se ouviu soar o sino da igreja.
Naqueles piedosos tempos (estamos a falar de algo sucedido no século XVI) os
sinos tocavam várias vezes ao longo do dia, e por esse lado não deveria haver
motivo de estranheza, porém aquele sino dobrava melancolicamente a finados, e
isso, sim, era surpreendente, uma vez que não constava que alguém da aldeia se
encontrasse em vias de passamento.
Saíram
portanto as mulheres à rua, juntaram-se as crianças, deixaram os homens as
lavouras e os mesteres, e em pouco tempo estavam todos reunidos no adro da
igreja, à espera de que lhes dissessem a quem deveriam chorar. O sino ainda
tocou por alguns minutos mais, finalmente calou-se. Instantes depois a porta
abria-se e um camponês aparecia no limiar.
Ora,
não sendo este o homem encarregado de tocar habitualmente o sino, compreende-se
que os vizinhos lhe tenham perguntado onde se encontrava o sineiro e quem era o
morto. "O sineiro não está aqui, eu é que toquei o sino", foi a
resposta do camponês. "Mas então não morreu ninguém?", tornaram os
vizinhos, e o camponês respondeu: "Ninguém que tivesse nome e figura de
gente, toquei a finados pela Justiça porque a Justiça está morta."
Que
acontecera? Acontecera que o ganancioso senhor do lugar (algum conde ou marquês
sem escrúpulos) andava desde há tempos a mudar de sítio os marcos das estremas
das suas terras, metendo-os para dentro da pequena parcela do camponês, mais e
mais reduzida a cada avançada. O lesado tinha começado por protestar e
reclamar, depois implorou compaixão, e finalmente resolveu queixar-se às
autoridades e acolher-se à protecção da justiça. Tudo sem resultado, a
expoliação continuou. Então, desesperado, decidiu anunciar urbi et orbi (uma
aldeia tem o exato tamanho do mundo para quem sempre nela viveu) a morte da
Justiça.
Talvez
pensasse que o seu gesto de exaltada indignação lograria comover e pôr a tocar
todos os sinos do universo, sem diferença de raças, credos e costumes, que
todos eles, sem exceção, o acompanhariam no dobre a finados pela morte da
Justiça, e não se calariam até que ela fosse ressuscitada. Um clamor tal,
voando de casa em casa, de aldeia em aldeia, de cidade em cidade, saltando por
cima das fronteiras, lançando pontes sonoras sobre os rios e os mares, por
força haveria de acordar o mundo adormecido...
Não
sei o que sucedeu depois, não sei se o braço popular foi ajudar o camponês a
repor as estremas nos seus sítios, ou se os vizinhos, uma vez que a Justiça
havia sido declarada defunta, regressaram resignados, de cabeça baixa e alma
sucumbida, à triste vida de todos os dias. É bem certo que a História nunca nos
conta tudo...
Suponho
ter sido esta a única vez que, em qualquer parte do mundo, um sino, uma
campânula de bronze inerte, depois de tanto haver dobrado pela morte de seres
humanos, chorou a morte da Justiça. Nunca mais tornou a ouvir-se aquele fúnebre
dobre da aldeia de Florença, mas a Justiça continuou e continua a morrer todos
os dias. Agora mesmo, neste instante em que vos falo, longe ou aqui ao lado, à
porta da nossa casa, alguém a está matando.
De cada vez que morre, é como se afinal nunca
tivesse existido para aqueles que nela tinham confiado, para aqueles que dela
esperavam o que da Justiça todos temos o direito de esperar: justiça,
simplesmente justiça.
Não
a que se envolve em túnicas de teatro e nos confunde com flores de vã retórica
judicialista, não a que permitiu que lhe vendassem os olhos e viciassem os
pesos da balança, não a da espada que sempre corta mais para um lado que para o
outro, mas uma justiça pedestre, uma justiça companheira quotidiana dos homens,
uma justiça para quem o justo seria o mais exato e rigoroso sinônimo do ético,
uma justiça que chegasse a ser tão indispensável à felicidade do espírito como
indispensável à vida é o alimento do corpo.
Uma justiça exercida pelos tribunais, sem
dúvida, sempre que a isso os determinasse a lei, mas também, e sobretudo, uma
justiça que fosse a emanação espontânea da própria sociedade em ação, uma
justiça em que se manifestasse, como um iniludível imperativo moral, o respeito
pelo direito a ser que a cada ser humano assiste.
Mas
os sinos, felizmente, não tocavam apenas para planger aqueles que morriam.
Tocavam também para assinalar as horas do dia e da noite, para chamar à festa
ou à devoção dos crentes, e houve um tempo, não tão distante assim, em que o
seu toque a rebate era o que convocava o povo para acudir às catástrofes, às
cheias e aos incêndios, aos desastres, a qualquer perigo que ameaçasse a
comunidade.
Hoje, o papel social dos sinos encontra-se
limitado ao cumprimento das obrigações rituais e o gesto iluminado do camponês
de Florença seria visto como obra desatinada de um louco ou, pior ainda, como
simples caso de polícia.
Outros
e diferentes são os sinos que hoje defendem e afirmam a possibilidade, enfim,
da implantação no mundo daquela justiça companheira dos homens, daquela justiça
que é condição da felicidade do espírito e até, por mais surpreendente que
possa parecer-nos, condição do próprio alimento do corpo. Houvesse essa
justiça, e nem um só ser humano mais morreria de fome ou de tantas doenças que
são curáveis para uns, mas não para outros.
Houvesse
essa justiça, e a existência não seria, para mais de metade da humanidade, a
condenação terrível que objetivamente tem sido. Esses sinos novos cuja voz se
vem espalhando, cada vez mais forte, por todo o mundo são os múltiplos
movimentos de resistência e ação social que pugnam pelo estabelecimento de uma nova
justiça distributiva e comutativa que todos os seres humanos possam chegar a
reconhecer como intrinsecamente sua, uma justiça protetora da liberdade e do
direito, não de nenhuma das suas negações.
Tenho dito que para essa justiça dispomos já
de um código de aplicação prática ao alcance de qualquer compreensão, e que
esse código se encontra consignado desde há cinquenta anos na Declaração
Universal dos Direitos Humanos, aquelas trinta direitos básicos e essenciais de
que hoje só vagamente se fala, quando não sistematicamente se silencia, mais
desprezados e conspurcados nestes dias do que o foram, há quatrocentos anos, a
propriedade e a liberdade do camponês de Florença.
E
também tenho dito que a Declaração Universal dos Direitos Humanos, tal qual se
encontra redigida, e sem necessidade de lhe alterar sequer uma vírgula, poderia
substituir com vantagem, no que respeita a retidão de princípios e clareza de
objetivos, os programas de todos os partidos políticos do orbe, nomeadamente os
da denominada esquerda, anquilosados em fórmulas caducas, alheios ou impotentes
para enfrentar as realidades brutais do mundo atual, fechando os olhos às já
evidentes e temíveis ameaças que o futuro está a preparar contra aquela
dignidade racional e sensível que imaginávamos ser a suprema aspiração dos
seres humanos.
Acrescentarei
que as mesmas razões que me levam a referir-me nestes termos aos partidos
políticos em geral, as aplico por igual aos sindicatos locais, e, em
consequência, ao movimento sindical internacional no seu conjunto. De um modo
consciente ou inconsciente, o dócil e burocratizado sindicalismo que hoje nos
resta é, em grande parte, responsável pelo adormecimento social decorrente do
processo de globalização econômica em curso. Não me alegra dizê-lo, mas não
poderia calá-lo. E, ainda, se me autorizam a acrescentar algo da minha lavra
particular às fábulas de La Fontaine, então direi que, se não interviermos a
tempo, isto é, já, o rato dos direitos humanos acabará por ser implacavelmente
devorado pelo gato da globalização econômica.
E
a democracia, esse milenário invento de uns atenienses ingênuos para quem ela
significaria, nas circunstâncias sociais e políticas específicas do tempo, e
segundo a expressão consagrada, um governo do povo, pelo povo e para o povo?
Ouço muitas vezes argumentar a pessoas sinceras, de boa fé comprovada, e a
outras que essa aparência de benignidade têm interesse em simular, que, sendo
embora uma evidência indesmentível o estado de catástrofe em que se encontra a
maior parte do planeta, será precisamente no quadro de um sistema democrático
geral que mais probabilidades teremos de chegar à consecução plena ou ao menos
satisfatória dos direitos humanos.
Nada
mais certo, sob condição de que fosse efetivamente democrático o sistema de
governo e de gestão da sociedade a que atualmente vimos chamando democracia. E
não o é. É verdade que podemos votar, é verdade que podemos, por delegação da
partícula de soberania que se nos reconhece como cidadãos eleitores e
normalmente por via partidária, escolher os nossos representantes no
parlamento, é verdade, enfim, que da relevância numérica de tais representações
e das combinações políticas que a necessidade de uma maioria vier a impor
sempre resultará um governo.
Tudo
isto é verdade, mas é igualmente verdade que a possibilidade de ação
democrática começa e acaba aí. O eleitor poderá tirar do poder um governo que
não lhe agrade e pôr outro no seu lugar, mas o seu voto não teve, não tem, nem
nunca terá qualquer efeito visível sobre a única e real força que governa o
mundo, e portanto o seu país e a sua pessoa: refiro-me, obviamente, ao poder
econômico, em particular à parte dele, sempre em aumento, gerida pelas empresas
multinacionais de acordo com estratégias de domínio que nada têm que ver com
aquele bem comum a que, por definição, a democracia aspira.
Todos sabemos que é
assim, e contudo, por uma espécie de automatismo verbal e mental que não nos
deixa ver a nudez crua dos fatos, continuamos a falar de democracia como se se
tratasse de algo vivo e atuante, quando dela pouco mais nos resta que um
conjunto de formas ritualizadas, os inócuos passes e os gestos de uma espécie
de missa laica.
E
não nos apercebemos, como se para isso não bastasse ter olhos, de que os nossos
governos, esses que para o bem ou para o mal elegemos e de que somos portanto
os primeiros responsáveis, se vão tornando cada vez mais em meros "comissários
políticos" do poder econômico, com a objetiva missão de produzirem as leis
que a esse poder convierem, para depois, envolvidas no açúcares da publicidade
oficial e particular interessada, serem introduzidas no mercado social sem
suscitar demasiados protestos, salvo os certas conhecidas minorias eternamente
descontentes...
Que
fazer? Da literatura à ecologia, da fuga das galáxias ao efeito de estufa, do
tratamento do lixo às congestões do tráfego, tudo se discute neste nosso mundo.
Mas o sistema democrático, como se de um dado definitivamente adquirido se
tratasse, intocável por natureza até à consumação dos séculos, esse não se discute.
Ora, se não estou em erro, se não sou incapaz de somar dois e dois, então,
entre tantas outras discussões necessárias ou indispensáveis, é urgente, antes
que se nos torne demasiado tarde, promover um debate mundial sobre a democracia
e as causas da sua decadência, sobre a intervenção dos cidadãos na vida
política e social, sobre as relações entre os Estados e o poder econômico e
financeiro mundial, sobre aquilo que afirma e aquilo que nega a democracia,
sobre o direito à felicidade e a uma existência digna, sobre as misérias e as
esperanças da humanidade, ou, falando com menos retórica, dos simples seres
humanos que a compõem, um por um e todos juntos.
Não
há pior engano do que o daquele que a si mesmo se engana. E assim é que estamos
vivendo. Não tenho mais que dizer. Ou sim, apenas uma palavra para pedir um
instante de silêncio. O camponês de Florença acaba de subir uma vez mais à
torre da igreja, o sino vai tocar. Ouçamo-lo, por favor.
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As imagens do fórum deste ano de 2012 são de Cli Oliveira.
As imagens do fórum deste ano de 2012 são de Cli Oliveira.
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